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Os ciclos do agrarismo e o Direito Agrário brasileiro

por Albenir Querubini.

[*Artigo originalmente publicado como estudo preliminar da obra “Agronegócio: Direito e a interdisciplinaridade do setor].

O Direito Agrário pode ser definido como sendo o conjunto de normas de direito privado e público que regulam as relações decorrentes da atividade agrária (abrangendo a produção, o processamento, a comercialização e a agroindustrialização dos produtos agrícolas), com vistas ao desenvolvimento agrário sustentável em termos sociais, econômicos e ambientais[1]. Lembrando sempre que a atividade agrária é uma atividade econômica, cuja exploração sempre deve ocorrer de forma profissional e organizada pelos produtores rurais, que possui como elemento caracterizador a sujeição a um duplo risco: o risco próprio da exploração de um negócio econômico e o risco agrobiológico, que caracteriza a chamada agrariedade. Nesse sentido, ressalta-se que também é papel do Direito Agrário normatizar e orientar as ações de Política Agrícola, a partir de um diálogo interdisciplinar e de caráter técnico. A propósito, segundo definição criada pelo Prof. Dr. Darcy Walmor Zibetti, Presidente da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU, vale lembrar que “o agrarismo é uma doutrina que se caracteriza pela sua transcendência, pela sua transversalidade de conhecimentos e pela sua universalidade”, sendo que “o agrarismo tem como objetivos primordiais a produção de alimentos e matérias-primas de origem animal e vegetal, assim como a defesa do planeta Terra, possuindo função econômica, social e ambiental”.

O Direito Agrário enquanto ramo jurídico autônomo e especializado é fruto da Modernidade, tendo a Itália como seu berço. Referido ramo do Direito nasceu de uma ruptura com as normas de Direito Privado que até então regulavam as relações jurídicas agrárias, em que pese o fato de ainda hoje decorrer de disposições do Código Civil italiano. Já no Brasil o nascimento do Direito Agrário se deu de forma autônoma a partir da edição do Estatuto da Terra – Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, publicado 20 dias após a edição da Emenda à Constituição de 1964 de nº 10, de 10 de novembro de 1964, a qual outorgou à União a competência privativa para legislar em matéria de Direito Agrário[2].

O Estatuto da Terra tem como característica ser reformador e técnico, prevendo uma série de institutos próprios e balizando ações de Política Agrícola que possuem uma preocupação com o desenvolvimento do setor agrário e a sua sustentabilidade, tendo como seu principal princípio a função social da propriedade. Reformador porque na Década de 1960 o Brasil necessitava solucionar uma série de problemas de ordem social, política e jurídica, tais como enfrentar os problemas de abastecimento interno de alimentos e matérias-primas decorrentes do crescimento das populações urbanas e das indústrias, reformar a estrutura fundiária marcada pela grande quantidade de imóveis agrários improdutivos e de minifúndios (ou “parvifúndios”), realizar a discriminação das áreas públicas (em especial das chamadas terras devolutas), apresentar soluções para a baixa produtividade das terras, evitar o êxodo rural dos produtores rurais, realizar reforma agrária e implantar uma Política Agrícola nacional. O caráter técnico decorre do fato de que a legislação agrária brasileira foi elaborada de forma multidisciplinar, por juristas e técnicos das Ciências Rurais, tendo sempre o suporte dados técnicos. Além do Estatuto da Terra, o Direito Agrário brasileiro conta com disposições que foram incorporadas pela Constituição Federal de 1988, além de uma vasta legislação extravagante que passou a acompanhar e adaptar-se, na medida do possível, as transformações sociais, econômicas e tecnológicas vivenciadas pelo setor agrário brasileiro ao longo do tempo, mas sempre mantendo em sua essência valorativa a preocupação com o desenvolvimento agrário e da sustentabilidade na exploração da atividade agrária.

Ao longo das últimas décadas o Brasil sofreu grandes transformações no seu setor agrário, consolidando-se como uma das principais potências mundiais na produção de alimentos e demais produtos agrícolas de origem vegetal e animal[3]. Para se ter uma noção, o Brasil é hoje o maior produtor mundial de açúcar, café e suco de laranja; o segundo maior produtor mundial de soja, carne de frango e carne bovina; o terceiro produtor mundial de milho. Conforme dados compilados pelo pesquisador Evaristo de Miranda em obra publicada em 2017, “o valor bruto da produção agropecuária é na ordem de R$ 564 bilhões e os cinco principais produtos são: soja (R$ 136 bi), pecuária (R$ 94bi), cana-de-açúcar (R$ 60bi), milho (R$ 53bi) e leite (R$ 45bi)”, sendo que “as exportações de soja, sozinhas, superam em valor as de petróleo e derivados de minério de ferro[4]. Além disso, a partir do ano de 1997 o Brasil consolidou-se como um grande exportador de diversos produtos agrícolas, destacando-se na produção diversificada de alimentos, fibras de origem animal e vegetal, frutas, agroenergia (a exemplo de lenha, carvão, etanol, biocombustíveis e biogás) e produtos especiais com alto valor agregado (produtos orgânicos, vinhos e espumantes, azeites, madeira certificada, cafés especiais, flores, mel, borracha, etc).

Importante salientar que essa transformação vivenciada pelo setor agrário brasileiro também se deve às contribuições das normas e institutos de Direito Agrário, observando que as normas do Estatuto da Terra e da respectiva legislação agrária extravagante renovaram-se e agregaram novos sentidos, novos valores, adaptando-se às mudanças vivenciadas pela sociedade brasileira e mundial, em termos sociais, econômicos e ambientais. Nessa via de mão dupla, também é possível constatar que a evolução do setor agrário brasileiro também traz reflexos diretos no objeto do Direito Agrário, diante da necessidade da regulação das novas relações jurídicas e da necessidade de apresentar soluções aos problemas jurídicos delas decorrentes. É por conta disso que a União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU, atenta as transformações vivenciadas no setor agrário brasileiro e os seus respectivos reflexos na forma de pensar e estudar o Direito Agrário no Brasil, propõe a divisão do estudo do Direito Agrário brasileiro em dois ciclos evolutivos da disciplina, ressaltando que o Direito Agrário deve ser sempre estudado e pensado como uma ferramenta em prol do desenvolvimento agrário e da sustentabilidade.

primeiro ciclo do agrarismo no Brasil foi marcado pelo enfrentamento de questões fundiárias. Tal contexto teve reflexo direto também no ensino nas publicações alusivas ao Direito Agrário no Brasil, fato que tem como explicação a circunstância de que o Estatuto da Terra criou, no âmbito da burocracia federal, o então Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA (atual Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA) como órgão executor das ações de reforma da estrutura fundiária. Por consequência, os primeiros cursos de Direito Agrário foram realizados justamente com o objetivo de formar e qualificar os seus respectivos burocratas (Procuradores e demais Servidores), que após se tornaram professores de Direito Agrários e autores de muitos dos primeiros manuais e demais obras sobre a matéria, incorporando quase que exclusivamente como matérias de suas disciplinas e obras as questões fundiárias. Tal fato trouxe como consequência uma falha de cunho científico e metodológico, pois as questões fundiárias correspondem apenas uma pequena parcela do objeto de estudo do Direito Agrário brasileiro, que, aliás, é por vezes abordada equivocadamente com forte influência de cujo ideológico marxista em detrimento da raiz científica e técnica pela qual se originou a legislação agrária.  Ademais, cumpre observar que essa fase fundiária, apresenta uma face estática, uma que tende a perder sua importância na medida em que os problemas fundiários são resolvidos, dando vez, inevitavelmente ao próximo ciclo.

O Direito Agrário brasileiro vive hoje a fase do segundo ciclo do agrarismo, o qual é marcado pela dinâmica das cadeias produtivas e dos complexos agroindustriais, por conta do contexto do chamado agronegócio. Em que pese ainda existam problemas jurídicos de ordem fundiária a serem resolvidos Brasil, observamos que o estudo e o ensino do Direito Agrário voltado para temas como reforma agrária já não fazem mais sentido, razão pela qual o agrarista deve se voltar sua atenção para o enfrentamento de temas correlatos ao atual estágio de desenvolvimento da atividade agrária, apresentando soluções aos problemas jurídicos observados na dinâmica das cadeias produtivas e dos complexos agroindustriais, englobando não apenas a produção, mas também a industrialização e a comercialização dos produtos agrícolas, em atenção as exigências dos mercados consumidores e da legislação correlata, a exemplo da legislação ambiental e fitossanitária. Ressalta-se que o estudo do Direito Agrário sempre deve ser técnico, lembrando que participam do agronegócio os pequenos produtores rurais (qualificados como agricultores familiares – nos termos agora definidos pela Lei nº 11.326/2006 – ou não), médios e grandes produtores, cada qual atuando no seu respectivo nicho de mercado (produção de commodities, produtos convencionais, agroecologia, orgânicos, etc).

É com atenção a essas vicissitudes e transformações vivenciadas pelo setor agrário brasileiro, no atual contexto do segundo ciclo do agrarismo, que a presente obra “Agronegócio, Direito e a Interdisciplinaridade do Setor” surge em momento oportuno e conveniente, trazendo uma contribuição importante ao estudo do Direito. Registro que a presente obra é fruto de curso criado por iniciativa do agrarista e Professor Pedro Puttini Mendes, o qual foi ministrado junto à UCDB em Campo Grande – Mato Grosso do Sul, reunindo importantes estudos que conciliam conhecimento teórico e aplicação prática, enfrentando e apresentando soluções a problemas atuais e, o mais importante, trazendo luz ao debate acadêmico e científico da matéria.

Notas:

[1] A referida definição consta em: ZIBETTI, Darcy Walmor; QUERUBINI, Albenir. O Direito Agrário brasileiro e sua relação com o agronegócioInDireito e Democracia – Revista de Divulgação Científica e Cultural do Isulpar. Vol. 1 – n. 1, jun./2016, disponível em: <http://www.isulpar.edu.br/revista/file/130-o-direito-agrario-brasileiro-e-a-sua-relacao-com-o-agronegocio.html>. O respectivo estudo também consta publicado em PARRA, Rafaela Aiex (organizadora). Direito aplicado ao agronegócio – uma abordagem multidisciplinar. Londrina: Editora Thoth, 2018, pp. 59-86.

[2] Vide: ZIBETTI, Darcy Walmor; QUERUBINI, Albenir. O Direito Agrário brasileiro e sua relação com o agronegócio. Op.cit.

[3] Sobre o setor agrário brasileiro, consulte: BUAINAIN, Antônio Márcio; ALVES, Eliseu; SILVEIRA, José Maria da; NAVARRO, Zander (organizadores). O mundo rural no Brasil do Século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: Editora Embrapa, 2014 (também disponível em versão digital em: <http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/107662/1/O-MUNDO-RURAL-2014.pdf>).  MIRANDA, Evaristo de. Agropecuária no Brasil: uma síntese. São Paulo: Metalivros, 2017. SCHNEIDER, Sergio; FERREIRA, Brancolina; ALVES, Fabio (Organizadores). Aspectos Multidimensionais da Agricultura Brasileira – diferentes visões do Censo Agropecuário 2006. Brasília: Ipea, 2014. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_aspectos_multidimensionais.pdf>. VIEIRA FILHO, José Eustáquio Ribeiro; GASQUES, José Garcia (Organizadores). Agricultura, transformação produtiva e sustentabilidade. Brasília: Ipea, 2016. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/160725_agricultura_transformacao_produtiva.pdf>. DA LUZ, Antonio. A relação entre a agricultura e a economia em um mundo globalizado. In: PARRA, Rafaela Aiex (organizadora). Direito aplicado ao agronegócio – uma abordagem multidisciplinar. Londrina: Editora Thoth, 2018, pp. 107-133.

[4] MIRANDA, Evaristo de. Agropecuária no Brasil: uma síntese. São Paulo: Metalivros, 2017, p. 15.

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